O Superior Tribunal de Justiça marcou para o dia 25 de abril, a partir das 10h, uma audiência pública sobre o cultivo do cânhamo industrial no Brasil. Essa é uma uma variação da cannabis. A discussão subsidiará o julgamento de uma ação analisada pela corte. O resultado pode abrir caminho para o aproveitamento da planta como matéria prima de alimentos, suplementos, tecidos e outros produtos.
+ STF marca data para retomar julgamento sobre descriminalização da maconha
A ação teve origem na Justiça Federal no Paraná. A autora é a empresa DNA Soluções em Biotecnologia, com sede em Mindirituba, região metropolitana de Curitiba. Os réus são a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a União Federal. A empresa pretende obter, na via judicial, autorização para o plantio e o processamento do cânhamo, uma variação da cannabis rica em fibras, e com baixo teor de substância alucinógena.
Na petição inicial, a DNA defendeu “a utilização da planta em todo e qualquer setor industrial, com vistas ao desenvolvimento econômico e social do país, em respeito ao desenvolvimento socioeconômico e à livre iniciativa”. A ação judicial foi apresentada ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) durante a pandemia de Covid-19, o que foi usado pela empresa como argumento na petição.
“Não se pode ignorar que em razão da crise da COVID-19 a geração de empregos e tributos decorrentes do mercado de produção de hemp (cânhamo industrial) não pode ser ignorada, devendo o Estado atuar de forma direta para viabilizar este mercado”, sustentou a DNA.
Ainda no contexto da pandemia, a empresa reforçou o poder ansiolítico do canabidiol (CBD): “Além disso, não se pode olvidar, que o CBD pode ser considerado um agente suplementar importante na luta contra os impactos na saúde causados pela Covid-19, visto que a referida substância apresenta resultados positivos comprovados para o tratamento da ansiedade”.
Na avaliação do advogado Leonardo Navarro, membro efetivo da Comissão do Direito da Cannabis Medicinal do Conselho Federal da OAB, a menção a fins farmacêuticos (medicinais) na ação é um equívoco. “É legítimo pleitear o direito de cultivo do cânhamo para fins industriais e alimentícios. Entretanto, para fins farmacêuticos, o cânhamo não é o mais indicado, pois, entre outros motivos, tem baixo teor de tetrahidrocanabinol (THC)”, pondera Navarro.
O advogado lembra que o THC, embora alucinógeno, é o princípio ativo de muitos medicamentos, inclusive para epilepsia e dores crônicas. “Não é somente do CBD que se produz os medicamentos importantes. Muitos pacientes dependem de combinações entre THC e CBD, ou até mesmo só do THC, para as diferentes enfermidades tratadas com as substâncias encontradas na cannabis”, alerta Navarro. Para exemplificar, o advogado cita a composição do único medicamento registrado no Brasil atualmente, que combina THC (27 mg/mL) e CBD (25 mg/mL) extraídos da Cannabis Sativa.
Leonardo Navarro não descarta a hipótese de que o fim farmacêutico possa estar sendo usado na ação como uma estratégia para sensibilizar o Judiciário, camuflando-se a real intenção de apenas investir, por exemplo, na indústria alimentícia ou têxtil. “O objeto da discussão na audiência pública do STJ é tão somente o cânhamo, rico apenas em CBD e com no máximo 0,3% de THC por peso seco da planta. Infelizmente, por uma questão processual, não é possível expandir o debate para o cultivo de outras espécies da cannabis para fins medicinais, sem limitação ao teor de THC na planta”, lamenta o advogado.
“Eventual decisão que não contemple expressamente a cannabis medicinal poderá prejudicar toda a construção que está sendo feita, além de ser um direcionamento regulatório na contramão daquilo que encontramos em muitos países que regulam separadamente o cânhamo para fins industriais e a cannabis para fins medicinais”, conclui Navarro.
Após uma sequência de decisões desfavoráveis no TRF4, a empresa DNA conseguiu levar a ação para o STJ por meio de um Recurso Especial. Já no Superior Tribunal de Justiça, o Recurso Especial originou um Incidente de Assunção de Competência (IAC), cabível quando uma questão jurídica extrapola o interesse das partes, torna um assunto de grande relevância para a sociedade e demanda discussões mais aprofundadas. Por isso, a relatora, ministra Regina Helena Costa, determinou a realização da audiência pública sobre o tema.
“O presente incidente encarta questão jurídica qualificada e de expressiva projeção, considerando os notórios debates nos meios sociais, acadêmicos e institucionais acerca da utilização de substratos da Cannabis, cultivada em solo nacional, para a produção de medicamentos e sua disponibilização no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), sem prejuízo do necessário controle estatal sobre essa atividade, de modo a assegurar as políticas e instrumentos indispensáveis à prevenção e à repressão do tráfico ilícito de substâncias entorpecentes”, escreveu a ministra no despacho de designação de audiência pública.