Há 60 anos, a Beatlemania tomava conta dos Estados Unidos; o boxeador Cassius Clay se tornava Muhammad Ali após se converter ao islamismo; o Congresso americano autorizava o aumento da presença militar no Vietnã, escalando o conflito iniciado em 1955; as potências faziam progressos na corrida espacial, um das muitas disputas travadas durante a Guerra Fria, que polarizou o mundo por décadas.
No Brasil, essa polarização levava ao início de um período que durou 21 anos: a ditadura militar. O golpe militar de 1964 completa agora 60 anos. Em 31 de março daquele ano, o então presidente brasileiro João Goulart, mais conhecido como Jango, foi deposto, pondo fim à experiência democrática no Brasil.
Eleito vice-presidente nas eleições de 1960, último pleito no qual o voto para presidente e vice era separado, Jango teve um governo curto e conturbado após a renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961.
Isso porque entre as principais bandeiras de Jango estava a implementação das Reformas de Base: agrária, urbana e educacional. Ele também defendia a ampliação dos direitos trabalhistas e a melhoria das condições de vida da população mais pobre.
As propostas despertaram intensos debates e oposição. Mas o panorama internacional agravou ainda mais a situação.
Na época, o mundo estava dividido entre duas potências; os Estados Unidos, liderando o bloco capitalista, e a União Soviética, à frente do bloco comunista. Sem um confronto militar direto, os dois blocos mediam forças e influência no que ficou conhecido como Guerra Fria.
A Revolução Cubana, que aconteceu em 1959, instaurou um governo socialista na ilha a 144 quilômetros da costa norte-americana. Isso aumentou o temor de Washington em relação à disseminação do comunismo na América Latina, tida como aliada desde a Segunda Guerra Mundial.
Essa preocupação se refletiu no Brasil e contribuiu para a percepção de que líderes como Jango, que defendiam reformas sociais e econômicas, poderiam seguir o exemplo cubano. É o que explica o historiador Raphael Amaral, professor do Anglo Vestibulares.
"Naquele contexto, adotar uma postura autônoma, nacionalista, perante o interesse dos Estados Unidos significava ser acusado de fortalecer o comunismo", disse. "Foi exatamente o que houve com o governo João Goulart".
"O temor acabou gerando uma intensa e aguda oposição a Jango por parte da elite, dos setores mais conservadores da sociedade e de parte significativa da classe média. Chegou a um ponto em que pouco importava se ele era ou não um comunista. Foi colocada sobre ele essa pecha, e qualquer ação que ele adotava era julgada por esse olhar. Isso acaba fortalecendo bastante a instabilidade da época."
Entre os principais opositores de Jango estavam as elites políticas e econômica, a classe média, setores mais conservadores da sociedade, e a mídia brasileira, que, em dado momento, apoiou abertamente uma intervenção militar no país. É o que diz o doutor em História e autor do livro "Vozes de 1964: imprensa, militares e opinião pública", Luiz Antonio Dias.
"Desde o início, o governo Goulart sempre sofreu duros ataques. A imprensa de forma geral, toda a grande imprensa, com exceção do jornal Última Hora, trabalhou para desestabilizar o governo Goulart", diz
"A imprensa tem um papel importante, porque ela constrói essa ideia e fortalece esse pensamento em quem pensa dessa forma. A Folha, por exemplo, a partir de janeiro de 64, radicaliza e pede a intervenção dos militares constantemente. Isso hoje é usado para atestar a legalidade da 'revolução'", esclarece o professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Jango era retratado como um presidente incompetente, populista e com tendências autoritárias. Os índices econômicos do Brasil, que atravessava uma crise, também eram usados para reforçar essa imagem.
"Do ponto de vista econômico, muito se fala que o governo João Goulart foi ruim. O PIB de 1963, o último ano em que ele governa, fica abaixo de 1%. É baixo, mas é um PIB que vinha em queda desde o final do governo Juscelino, e a inflação já vinha em alta", explica Dias.
"É um governo que tem um desempenho econômico abaixo do que teve Juscelino Kubitschek, que é o anterior, mas não está muito abaixo do que se vê no governo do Castelo Branco (que o sucede)", completa.
Raphael Maia destaca ainda que as medidas que Jango tentava adotar eram sabotadas de várias formas pela elite contrária a seu governo.
"Havia muita gente bem pouco disposta a contribuir ou colaborar para o governo João Goulart. Naquele contexto de disputa, o governo dele ser instável, não funcionar, era interessante politicamente para alguns setores. Isso fortalecia a narrativa de que ele era comunista e incapaz para o cargo".
Construiu-se então a ideia de que o governo Goulart não era popular e não tinha apoio da população de forma geral. O que, segundo Luiz Antonio Dias, não é verdade.
Em seu livro, o professor da PUC-SP apresentou pesquisas inéditas feitas pelo Instituto Ibope às vésperas do golpe, mas que não foram divulgadas à época. Nelas, o presidente deposto não só tinha amplo apoio, como era o favorito para vencer as eleições presidenciais de 1965.
"Por mais que se fale que o Goulart não tinha apoio, por isso caiu, as pesquisas mostram o oposto. Por exemplo, em uma pesquisa nacional do dia 9 ao dia 26 de março de 64, há aprovação da Reforma Agrária em várias capitais. Na Guanabara (agora Rio de Janeiro), ex-capital nacional, a aprovação da Reforma Agrária era de 82%. O menor índice coletado nessa pesquisa foi em Curitiba, onde 61% achavam que a reforma era boa", pontua.
Outra pesquisa destrinchada pelo historiador, encomendada pela Federação do Comércio de São Paulo (Fecomercio), após o comício no Rio de Janeiro em que Jango apresentou suas reformas, em 13 de março, mostra que, entre os mais pobres, 75% eram favoráveis às medidas anunciadas pelo presidente, enquanto entre os mais ricos, o apoio era de 50%.
"A mesma pesquisa tem outra pergunta. Se as pessoas acharam que eram medidas demagógicas, se eram medidas que levariam o país ao comunismo ou se eram medidas positivas. Só 16% achavam que essas medidas levariam o país ao comunismo e 55% achavam que eram medidas positivas para o país", revela Dias.
"Não tem quem contratou essa pesquisa nacional, então não tem como sabermos por que não foi divulgada. Mas, a minha ideia é que ela não foi divulgada porque isso enfraqueceria o movimento que possibilitou o golpe de 64".