As tropas ucranianas continuam lutando para conter a invasão russa, que completa dois anos neste sábado (24). A defesa é suprida, sobretudo, pelo auxílio do Ocidente e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), que vêm destinando bilhões em armamento e munições ao país. O alto volume de gastos, contudo, já deixa rastros negativos nos países aliados, resultando em um certo desgaste internacional.
Além disso, as dezenas de pacotes de sanções não conseguiram colapsar a economia russa – principal aposta para que Moscou não conseguisse mais financiar os esforços de guerra. Uma semana depois da morte do opositor Alexei Navalny, numa prisão na Sibéria, os Estados Unidos anunciaram nesta sexta-feira (23) o pacote mais amplo de sanções ao país presidido por Vladimir Putin. O foco das restrições são o setor financeiro e o complexo militar-industrial.
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Até agora, porém, as medidas de isolamento fizeram com que o governo de Moscou ampliasse as alianças com outros países, como Coreia do Norte, Irã e China, resultando apenas em uma troca de parcerias econômicas.
“Na medida em que os países ocidentais mantêm as sanções sobre a economia russa, o Kremlin passa a buscar mais alianças com outros governos também vistos com desconfiança e que, no âmbito militar, representam preocupações para os governos europeus e americano. Nesse cenário, o maior isolamento russo se converte no fortalecimento dos chamados 'Estados páreas'”, explica Giovana Branco, pesquisadora de política russa e doutoranda de Ciência Política (USP).
Enquanto a Rússia conseguiu manter os esforços militares recorrendo a novos parceiros comerciais, a Ucrânia continua dependente de ajuda internacional para conter a ofensiva.
No início do conflito, a comunidade internacional contava com um confronto rápido e preciso. Com a intervenção financeira, o Ocidente esperava resultados significativos nas batalhas contra os russos. Mas isso não está acontecendo. Desde o final de 2023, as tropas ucranianas vêm falhando em recuperar as regiões ocupadas pelos russos, sem avanços significativos.
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Essa estagnação está afetando os países aliados. Nos Estados Unidos, por exemplo, o presidente Joe Biden continua enfrentando resistência dos parlamentares republicanos para aprovar um pacote de US$ 60 bilhões ao governo ucraniano. Eles criticam a magnitude da assistência militar e monetária já enviada à Ucrânia – Washington já destinou mais de US$ 111 bilhões para o país – e cobram investimentos internos.
O mesmo ocorre em países europeus. Apesar de a União Europeia ter aprovado recentemente uma ajuda de 50 bilhões de euros para a Ucrânia, bem como o 13º pacote de sanções contra a Rússia, as nações continuam enfrentando problemas econômicos. Uma das causas é o bloqueio da importação de gás e petróleo russo, o que forçou os governos a buscar outros fornecedores de energia, encarecendo o serviço à população.
A guerra de Israel contra o grupo extremista Hamas, iniciada em outubro de 2023, foi outro ponto que prejudicou Kiev. A rápida ofensiva israelense na Faixa de Gaza acabou ofuscando a invasão russa na Ucrânia por causa do alto número de mortes e feridos – atualmente em 30 mil e 69 mil, respectivamente –, além da crise humanitária. Muitos países começaram a enviar ajuda a Gaza, diminuindo os auxílios ao governo ucraniano.
O professor Augusto Dall’Agnol, doutor em Estudos Estratégicos Internacionais (UFRGS) e senior fellow do Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia (Isape), aponta ainda outro fator para o desgaste do Ocidente com a guerra: a capacidade de adaptação da Rússia. Segundo ele, enquanto os russos têm demonstrado pouca habilidade ou motivação para uma ofensiva, são agora “defensores competentes”.
Como exemplo, Dall’Agnol citou as ofensivas ucranianas em Kiev e Kharkiv em 2022, que romperam defesas russas sobrecarregadas. O mesmo ocorreu em Kherson, pouco tempo depois, onde os ucranianos dominaram uma defesa russa logisticamente insustentável. Já em 2023, o exército russo melhorou as defesas na Ucrânia, colocando campos minados e recrutando reservas móveis e guarnecidas para atacar quando ameaçadas.
“Romper defesas como essas historicamente provou ser muito difícil. Em uma guerra de atrito, a adaptação estratégica supera a adaptação tática. Há um ano, a Guerra Rússia-Ucrânia parecia destinada a durar. Nada ao longo do último ano serviu para mudar essa conclusão. De fato, muito aconteceu não apenas para reforçá-la, mas até mesmo para sugerir que uma vitória ucraniana completa é cada vez mais improvável”, pontua.
Apesar do cenário desanimador, Giovana afirma que os países ainda não projetam deixar de auxiliar a Ucrânia, pois a falta de financiamento militar deixaria as tropas ucranianas sem capacidade de retaliação e resistência aos ataques russos – situação já vivenciada por alguns soldados devido ao atraso das entregas militares. Nesse contexto, uma vitória russa seria quase certa, colocando a segurança da Europa em xeque.
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"Embora o conflito não esteja evoluindo em termos de conquistas territoriais, é notória a capacidade da Ucrânia de não permitir maiores avanços russos em virtude dos armamentos enviados pela Otan”, diz a pesquisadora. “Mesmo que alguns países asiáticos tenham se beneficiado com acordos econômicos com a Rússia, o conflito é prejudicial a todos na medida em que compartimenta a política internacional”, completa.
Apesar de o cenário internacional ser imprevisível, não há no momento esperança de um cessar-fogo. De acordo com Roberto Uebel, professor de Relações Internacionais da ESPM Porto Alegre, a guerra está em uma “esfera de normalização”. O termo é usado para classificar um conflito que, sem muitas mudanças, já entrou na agenda política dos países, com batalhas que estão longe de acabar.
“O cenário se assemelha à guerra na Síria, que durou mais de uma década. No seu início, o conflito teve um auge nos debates internacionais, debates no Conselho de Segurança das Nações Unidas e movimentações geopolíticas – ou seja, uma divisão de poderes no tabuleiro internacional. O mesmo podemos falar, dadas as proporções, da guerra na Ucrânia, que está muito distante de um cessar-fogo ou acordo de paz”, explica.
Uebel indica que uma das possibilidades é que os países assinem um armistício – acordo no qual as partes envolvidas em conflito armado concordam em parar de lutar. A resolução não seria necessariamente o fim da guerra, uma vez que pode ser apenas um cessar-fogo enquanto se tenta realizar um tratado de paz. Ou seja, uma “trégua sem paz”.
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"Esse é um dos cenários que se desenha: um armistício. Os países continuariam teoricamente em guerra, mas sem agressões mútuas. Para isso, seriam criadas Zonas de Amortecimento, também conhecidas como ‘Zonas Tampão’ [áreas neutras], nas cidades ocupadas pela Rússia, como Donetsk e Luhansk. Isso não seria inédito. Já ocorre entre Coreia do Norte e Coreia do Sul, e Azerbaijão e Armênia”, diz o professor.
Para que isso aconteça, no entanto, o presidente Volodymyr Zelensky teria que desistir do plano de vitória total sobre a Rússia, que prevê a expulsão de todos os soldados do solo ucraniano, bem como a integridade territorial do país. Isso inclui a devolução das regiões anexadas ilegalmente pelo governo Putin em 2022 – Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaporizhzhia –, além da Crimeia, anexada em 2014. O presidente Putin, que defende que as regiões são parte da Rússia, também teria que abandonar o controle dos territórios.