EXPLICA: Após embate entre o ministro Alexandre de Moraes, do STF, e o bilionário Elon Musk sobre suspensão de perfis na plataforma X, usuários se posicionaram sobre o tema da liberdade de expressão. Parte das postagens usa falas do empresário para defender que o direito à liberdade de expressão deve ser garantido nos moldes da primeira emenda da Constituição dos Estados Unidos, enquanto outros acusam Musk de usar o tema para conseguir vantagens econômicas no Brasil. O Comprova explica as diferenças.
Conteúdo analisado: Com a crescente tensão entre o empresário Elon Musk, dono da plataforma X, e o Supremo Tribunal Federal (STF), diversas postagens sobre o direito à liberdade de expressão foram compartilhados nas redes sociais. De um lado, os que se alinham a Musk, como no post que apresenta um suposto áudio do empresário afirmando que “nenhum país fornece a proteção para a liberdade de expressão como os EUA”. Do outro, os que acreditam que a preocupação do multimilionário não está voltada para a garantia de direitos dos brasileiros, e sim para questões econômicas. Há um post, por exemplo, mostrando a foto de uma fábrica da Tesla, empresa da qual Musk é dono, na China, onde o X é proibido, apontando uma incoerência do empresário sobre o tema da liberdade de expressão.
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Comprova Explica: No dia 7 de abril, Elon Musk ameaçou desbloquear contas de usuários do X que haviam sido suspensas por determinação do Supremo Tribunal Federal (STF). Com isso, o ministro Alexandre de Moraes incluiu o bilionário no inquérito das milícias digitais. O embate entre Moraes e Musk reacendeu o debate sobre liberdade de expressão no Brasil, com os apoiadores da extrema-direita acusando o Supremo de praticar censura. Os perfis contrários à Corte defendem que a liberdade de expressão deve ser absoluta, e citam a Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos como argumento – como se ela fosse universal, não específica do arcabouço legislativo daquele país. Entre outros pontos, a Primeira Emenda diz que “o Congresso não deverá fazer qualquer lei a respeito restringindo a liberdade de discurso ou da imprensa”.
Apesar da liberdade de expressão ser um direito base para uma democracia, seus limites variam de país para país. No Brasil são proibidos discursos de ódio e contra o Estado Democrático de Direito. Já nos EUA, essa prática é muito mais permissiva, com casos em que discursos de ódio contra negros e marchas de cunho nazista foram julgados constitucionais. A seguir, a seção Comprova Explica traz detalhes sobre o tema.
Na publicação “Supremo Contemporâneo”, de junho de 2023, o STF reúne julgamentos emblemáticos da Suprema Corte do Brasil em defesa da liberdade de expressão. No capítulo “Liberdade de expressão e limites”, uma frase do ministro Alexandre de Moraes resume a percepção da legislação brasileira sobre o tema: “A liberdade de expressão não pode ser usada para a prática de atividades ilícitas ou discursos de ódio, contra a democracia ou contra as instituições.”
O documento do Supremo explica que a “teoria liberal e utilitarista da liberdade de expressão foi incorporada à jurisprudência constitucional dos Estados Unidos através da metáfora do livre mercado de ideais (free market place of ideas), mencionada pela primeira vez em 1919”. A ideia central é que, em uma sociedade democrática, a verdade e a razão só podem ser obtidas se a todos for atribuído o direito de demonstrar e debater, racionalmente, o seu ponto de vista — sem interferência estatal. “O núcleo essencial da primeira emenda à Constituição norte-americana, que garante a liberdade de expressão, busca proteger discursos, matérias e opiniões críticas ao governo, de modo a possibilitar o livre convencimento individual e coletivo sobre os assuntos relativos ao Estado”, diz o texto.
No entendimento do STF, a interpretação predominante nos Estados Unidos, com forte influência no Brasil, muitas vezes não oferece ferramentas apropriadas para regular discursos de ódio ou antidemocráticos. Isso foi observado, por exemplo, nos precedentes estabelecidos no caso Brandenburg vs. Ohio, nos quais se declarou a constitucionalidade de manifestações de ódio contra negros e judeus e a inconstitucionalidade de lei que restringia o uso de símbolos que remetessem a práticas de discriminação racial. O STF descreve na publicação: “não há liberdade de expressão quando o seu exercício puder resultar no próprio extermínio da liberdade de expressão”. “No livre mercado de ideias – para usarmos a concepção de John Stuart Mill consagrada na jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos – alguns conteúdos simplesmente não podem ser negociados”, relata o documento.
O professor emérito da Universidade de Brasília (UnB), Venício Artur de Lima, experiente nas áreas de Ciência Política e Comunicação e autor do livro “Liberdade de Expressão x Liberdade da Imprensa” explica que o tratamento legal do conceito de liberdade de expressão nos EUA é diferente de todos os outros países de democracia liberal. Os constitucionalistas americanos, quando discutem o assunto em comparação com outros países, costumam se referir à realidade norte-americana como “a exceção americana” ou a “excepcionalidade americana”. “No caso brasileiro, o Supremo foi definindo uma jurisprudência que limita a liberdade de expressão quando há risco ao sistema que a garante – a democracia e suas instituições. Essa jurisprudência impede, por exemplo, o discurso do ódio, que trata o outro como se fosse um inimigo, e discursos contra o Estado Democrático de Direito”, explica.
“Não é como se nos EUA não houvesse qualquer restrição à liberdade de expressão. Uma pessoa não pode fazer uma defesa da pedofilia. Há limites. Também não se pode gritar ‘fogo’ num teatro lotado, sem que isso seja verdade, e colocar pessoas em risco, por exemplo. Lá e aqui há limitações para o discurso que coloca em risco a democracia”, aponta o professor. “Mesmo assim, a jurisprudência nos EUA é mais ampla e se difere da jurisprudência no Brasil pelo grau de tolerância. A grande questão colocada é até que ponto qualquer tipo de opinião pode ser expressa no debate público”.
A pesquisadora Andréa Tôgo Mazzei, da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (FD-UnB), mostra no trabalho “Liberdade de expressão: um comparativo entre o caso New York Times v. Sullivan e a abordagem adotada pelo STF no Inquérito Judicial nº 4.781/DF” uma análise entre a abordagem adotada pela Suprema Corte dos Estados Unidos e a abordagem adotada pelo STF em relação a casos que envolvam a liberdade de expressão e seus limites. A pesquisa exemplifica situações em que os EUA tratam a liberdade de expressão como um direito quase absoluto (limitado apenas pela malícia ou negligência extrema do autor) e compara com o Brasil, onde se restringe o discurso sob a justificativa de proteção da democracia e suas instituições.
A jurisprudência norte-americana vem se solidificando desde a década de 1960, a partir do caso New York Times v. Sullivan (1964), enquanto a primeira decisão emblemática do STF acerca do tema ocorreu em 2003, com o caso Ellwanger, quando a Corte concluiu que “a dignidade da pessoa humana está acima da liberdade de expressão de um discurso de ódio”. Enquanto a jurisprudência norte-americana costuma prevalecer frente a outros bens jurídicos (preferred position doctrine), permitindo a realização de marchas de cunho nazista (caso National Socialist Party of America v. Village of Skokie), a brasileira tende a ser menos permissiva, ora priorizando a liberdade de expressão, ora priorizando outros direitos fundamentais como a dignidade da pessoa humana (caso Ellwanger).
Alguns juristas citados pela pesquisadora – como Ronaldo Porto Macedo Junior e Felipe Mendonça Terra – apontam a ausência de uma jurisprudência coerente sobre esse assunto no Brasil, uma vez que há exemplos de decisões opostas para casos similares, inclusive dentro de um mesmo tribunal. Ao longo das últimas décadas, os debates foram crescendo em relação ao caráter absoluto ou relativo desse direito quando em colisão com outros direitos fundamentais.
No episódio do podcast Café da Manhã, da Folha, do dia 10 de abril, a antropóloga Isabela Kalil, coordenadora do Observatório da Extrema Direita, explica que o tema da liberdade é global. “O tema da liberdade é o que permite a internacionalização da extrema-direita brasileira”, ela diz. Em 2018, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) trabalhou em suas campanhas com o tripé “Deus, pátria e família”, dialogando com segmentos específicos. Depois da pandemia e ações da covid-19, o lema virou “Deus, pátria, família e liberdade”. “A suposta liberdade de não usar máscara ou não tomar vacina, por exemplo, como se de um lado tivesse defensores da liberdade e do outro o respaldo de autoridades repressoras”, diz a antropóloga.
O assunto da liberdade de expressão voltou à tona no Brasil na última semana, depois que Alexandre de Moraes e Elon Musk, dono do X, protagonizaram mais um embate. Políticos de extrema-direita acusam o ministro de censura, depois que ele determinou o bloqueio de contas em redes sociais como o X. O empresário ameaçou descumprir as ordens judiciais brasileiras e isso provocou novas reações. O magistrado intensificou a suspensão de perfis de parlamentares, empresários e até partidos – investigados em inquéritos como o das Fake News e das Milícias Digitais – a partir da eleição de 2022, com a justificativa de que os donos das contas violam a lei ao espalhar desinformação e incentivar atos antidemocráticos.
Uma reportagem do Jornal Nacional, em 8 de abril, mostra que Elon Musk acumula controvérsias sob a bandeira dessa liberdade. Em 2020, ele questionou a mortalidade da covid e depois a eficácia da vacina. Musk escreveu: “o pânico do coronavirus é idiota”. “Elon Musk tem defendido a disseminação de informações deliberadamente falsas e a publicação de discursos de ódio, como se essas coisas pudessem caber no universo democrático da liberdade de expressão”, diz o início da reportagem. No Canal Meio, o jornalista Pedro Doria explicou, aos 6min30s, que, enquanto no Brasil a Justiça toma decisões que afetam o acesso de algumas pessoas ao X, por exemplo, na China, quem decide é o Partido Comunista Chinês – com quem o empresário não compra briga e, portanto, o que a China pede, ele faz.
O assunto se tornou tema da viagem de deputados federais bolsonaristas à Europa. Em reunião com parlamentares conservadores no Parlamento Europeu, em Bruxelas, na Bélgica, na semana passada, eles falaram sobre o que consideram “violações da liberdade de expressão e perseguição política no Brasil”. Ao denunciar cerceamento da liberdade de expressão no país, bolsonaristas levam em conta a ordem de Moraes para suspender perfis do X, mas omitem que Bolsonaro e aliados são investigados por suspeita de tentarem um golpe de Estado para impedir a posse de Lula (PT).
No início de março, um grupo de deputados brasileiros liderado por Eduardo Bolsonaro (PL-SP) passou cerca de uma semana em Washington (EUA) para angariar apoio político e tentar convencer os parlamentares republicanos de que o Brasil não é mais uma democracia. Eles justificam que há violação dos direitos de conservadores e defendem, por exemplo, que os Estados Unidos aprovem uma lei para penalizar as autoridades brasileiras com o objetivo de derrotar uma suposta “ditadura de esquerda”.
Depois da recente repercussão envolvendo o caso Musk, a Câmara dos Deputados resolveu rediscutir praticamente do zero uma nova proposta para o PL das fake news, que objetivava estabelecer uma regulamentação das redes sociais. O projeto cria a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na internet (PL 2.630/2020), e visa, entre outros pontos, a responsabilizar as big techs por conteúdos criminosos publicados nas plataformas. A ideia de criar uma nova discussão e enterrar a anterior foi sugerida pelo presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL).
Como verificamos: Primeiro pesquisamos notícias sobre a discussão recente da liberdade de expressão no Brasil, envolvendo a suspensão de contas nas redes sociais, e buscamos estudiosos do tema. Com isso, construímos referências sobre o assunto, como um documento elaborado pelo próprio STF e disponibilizado online sobre perspectivas da liberdade de expressão no contexto brasileiro. Também é possível encontrar facilmente no Google artigos e pesquisas que explicam a visão norte-americana do sentido de liberdade de expressão e suas práticas. Assim, podemos estabelecer as diferenças entre os dois países. De toda forma, como é um assunto largamente discutido, a própria publicação do STF se dedica, em um dos capítulos, a descrever a realidade dos EUA em contraposição com a do Brasil.
Por que explicamos: A liberdade de expressão é um tema recorrente e de interesse comum para toda a sociedade por ser essencial para a existência de uma democracia. Desse modo, qualquer mudança na legislação afeta diretamente o dia a dia dos cidadãos.
Quando o tema se torna o centro de discussões e é comparado com a legislação de outros países, é necessário compreender as diferenças e as realidades distintas em que tais leis estão inseridas. O presente texto se propõe a explicar os limites da liberdade de expressão nos Estados Unidos e no Brasil, devido à crescente movimentação da ala conservadora brasileira de tentar aproximar a legislação brasileira à Primeira Emenda americana.
Outras checagens sobre o tema: Os ministros do STF recorrentemente são alvo de desinformação. Recentemente o Comprova mostrou ser falso que o órgão bloqueou redes sociais de Augusto Nunes e que o FBI tenha investigado Alexandre de Moraes por envolvimento com narcotráfico.
Investigação e verificação
Imirante.com, piauí e Estado de Minas participaram desta investigação e a sua verificação, pelo processo de crosscheck, foi realizada pelos veículos A Gazeta, O Dia, Tribuna do Norte, Correio Braziliense, SBT, SBT News e Folha.
Esta reportagem foi elaborada por jornalistas do Projeto Comprova, grupo formado por 41 veículos de imprensa brasileiros, para combater a desinformação. Iniciado em 2018, o Comprova monitorou e desmentiu boatos e rumores relacionados à eleição presidencial. Na quinta fase, o Comprova verifica conteúdos suspeitos sobre políticas públicas do governo federal e eleições, além de continuar investigando boatos sobre a pandemia de covid-19. O SBT e SBT News fazem parte dessa aliança.
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